CAPÍTULO IV
Ninguém poderá ver o reino de Deus se não nascer de novo
• Ressurreição e reencarnação
1. Jesus, tendo vindo às cercanias de Cesaréia de Filipe, interrogou assim seus discípulos: “Que
dizem os homens, com relação ao Filho do Homem? Quem dizem
que eu sou?” – Eles lhe responderam: “Dizem uns que és João Batista; outros,
que Elias; outros, que Jeremias, ou algum
dos profetas.” – Perguntou-lhes Jesus: “E vós, quem dizeis que eu sou?” – Simão Pedro, tomando a palavra,
respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo:” – Replicou-lhe Jesus: “Bem-aventurado és,
Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne nem o sangue que isso te
revelaram, mas meu Pai, que está nos céus.” (S. MATEUS, 16:13 a 17; S. MARCOS, 8:27 a 30.)
2. Nesse ínterim, Herodes, o Tetrarca, ouvira falar de tudo
o que fazia Jesus e seu espírito se
achava em suspenso – porque uns diziam que João Batista ressuscitara dentre os mortos; outros que
aparecera Elias; e outros que um dos antigos profetas ressuscitara. – Disse então Herodes: “Mandei cortar a cabeça a João Batista; quem é
então esse de quem ouço dizer tão grandes coisas?” E ardia por vê-lo. (S. MARCOS, 6:14 a 16; S. LUCAS, 9:7 a 9.)
3. (Após a transfiguração.) Seus discípulos então o
interrogaram desta forma: “Por que dizem os escribas ser preciso que antes volte Elias?” – Jesus lhes respondeu: “É verdade que Elias há de vir e restabelecer todas as coisas: – mas, eu vos declaro que Elias já veio e eles não o conheceram e o
trataram como lhes aprouve. É assim que farão sofrer o Filho do Homem.” – Então, seus discípulos compreenderam que fora de João Batista que ele
falara. (S. MATEUS, 17:10 a 13; – S. MARCOS, 9:11 a 13.)
RESSURREIÇÃO E REENCARNAÇÃO
4. A reencarnação fazia parte dos dogmas dos judeus, sob o nome de ressurreição. Só os saduceus, cuja crença era a de que tudo acaba com a morte, não acreditavam nisso. As idéias dos judeus sobre esse ponto, como sobre muitos outros, não eram claramente definidas, porque apenas tinham
vagas e incompletas noções acerca da alma e da sua ligação com o corpo. Criam eles que um homem que vivera podia reviver, sem saberem precisamente de que maneira o fato poderia dar-se. Designavam pelo termo ressurreição o que o Espiritismo, mais judiciosamente, chama reencarnação. Com efeito, a ressurreição dá idéia de voltar à vida o corpo que já está morto, o que a Ciência demonstra ser materialmente impossível, sobretudo quando os elementos desse corpo já se acham desde muito tempo dispersos e absorvidos. A reencarnação é a volta da alma ou Espírito à vida corpórea, mas em outro corpo especialmente formado para ele e que nada tem de comum com o antigo. A palavra ressurreição podia assim aplicar-se a Lázaro, mas não a Elias, nem aos outros profetas. Se, portanto, segundo a crença deles, João Batista era Elias, o corpo de João não podia ser o de Elias, pois que João fora visto criança e
seus pais eram conhecidos. João, pois, podia ser
Elias reencarnado, porém, não ressuscitado.
5. Ora, entre os fariseus, havia um homem chamado Nicodemos,
senador dos judeus – que veio
à noite ter com Jesus e lhe disse: “Mestre, sabemos que
vieste da parte de Deus para nos instruir como um doutor, porquanto ninguém
poderia fazer os milagres que fazes, se Deus não
estivesse com ele.”
Jesus lhe respondeu: “Em verdade, em verdade digo-te:
Ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo.”
Disse-lhe Nicodemos: “Como pode nascer um homem já velho? Pode tornar a entrar no ventre
de sua mãe, para nascer segunda vez?”
Retorquiu-lhe Jesus: “Em verdade, em verdade, digo-te: Se um
homem não renasce da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. – O que é nascido da carne é carne e o que é
nascido do Espírito é Espírito. – Não te admires de que eu te haja dito ser preciso que nasças de
novo. – O Espírito sopra onde quer e ouves a sua voz mas não sabes donde vem ele, nem para
onde vai; o mesmo se dá com todo homem que é nascido do Espírito.”
Respondeu-lhe Nicodemos: “Como pode isso fazer-se?” – Jesus lhe observou: “Pois quê! és
mestre em Israel e ignoras estas coisas? Digo-te em verdade, em verdade, que não dizemos senão o que sabemos
e que não damos testemunho, senão do que temos visto. Entretanto, não aceitas o nosso testemunho. – Mas, se não me credes, quando vos falo das coisas da Terra, como me crereis, quando vos fale das coisas do céu?” (S. JOÃO, 3:1 a 12.)
6. A idéia de que João Batista era Elias e de que os profetas podiam reviver na Terra se nos depara em muitas passagens
dos Evangelhos, notadamente nas acima reproduzidas (n° 1, 2, 3). Se fosse
errônea essa crença, Jesus não houvera deixado de a combater, como combateu
tantas outras. Longe disso, ele a sanciona com toda a sua autoridade e a põe
por princípio e como condição necessária, quando diz:
‘”Ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo.” E insiste, acrescentando: Não te admires de que eu te haja dito ser preciso nasças de novo.
7. Estas palavras: Se um homem não renasce da água e do Espírito foram interpretadas no sentido da regeneração pela água do batismo. O texto primitivo, porém, rezava
simplesmente: não renasce da água e do Espírito, ao passo que nalgumas traduções as palavras – do Espírito – foram
substituídas pelas seguintes: do Santo Espírito, o que já não corresponde ao
mesmo pensamento. Esse ponto capital ressalta dos primeiros comentários a que
os Evangelhos deram lugar, como se comprovará um dia, sem equívoco possível. ¹
8. Para se apanhar o verdadeiro sentido dessas palavras, cumpre também se atente na significação do termo água que ali não fora empregado na acepção que lhe é própria.
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¹
A tradução de Osterwald está conforme o texto primitivo.
Diz: “Não renasce da água e do Espírito”; a de Sacy diz: do Santo
Espírito; a de Lamennais: do Espírito Santo.
À nota de Allan Kardec, podemos hoje acrescentar que as
modernas traduções já restituíram o texto primitivo, pois que só imprimem
“Espírito” e não Espírito Santo. Examinamos a tradução brasileira, a inglesa, a em Esperanto, a de Ferreira de
Almeida, e em todas elas está somente “Espírito”.
Além dessas modernas, encontramos a confirmação numa latina
de Theodoro de Beza, de 1642, que diz: “...genitus ex aqua et Spiritu...” “...et quod genitum est
ex Spiritu, spiritus est.”
É fora de dúvida que a palavra “Santo” foi interpolada, como
diz Kardec. – A Editora da FEB, 1947.
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Muito imperfeitos eram os conhecimentos dos antigos sobre as ciências físicas. Eles acreditavam que a Terra saíra das águas e, por isso, consideravam a água como elemento
gerador absoluto. Assim é que na Gênese se lê: “O Espírito de Deus era levado sobre as águas; flutuava sobre as águas; – Que o firmamento seja feito no meio das águas; – Que as águas que estão debaixo do céu se reúnam em um
só lugar e que apareça o elemento árido; – Que as águas produzam animais vivos que nadem na água e pássaros que voem sobre a terra e sob o firmamento.”
Segundo essa crença, a água se tornara o símbolo da natureza material, como o Espírito era o da natureza
inteligente. Estas palavras: “Se o homem não renasce da água e do Espírito, ou em água e em Espírito”, significam pois: “Se o homem não renasce com seu corpo e sua alma.” É nesse sentido que a princípio as compreenderam.
Tal interpretação se justifica, aliás, por estas outras palavras: O que é nascido da carne é carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. Jesus estabelece aí uma distinção
positiva entre o Espírito e o corpo. O que é nascido da carne é carne indica claramente que só o corpo procede do corpo e que o Espírito independe deste.
9. O Espírito sopra onde quer; ouves-lhe a voz, mas não
sabes nem donde ele vem, nem para onde vai: pode-se entender que se trata do
Espírito de Deus, que dá vida a quem ele quer, ou da alma do homem. Nesta última acepção – “não sabes donde ele vem, nem para onde vai” – significa que ninguém sabe o que foi, nem o que será o Espírito. Se o Espírito,
ou alma, fosse criado ao mesmo tempo que o corpo, saber-se-ia donde ele veio, pois que se lhe conheceria o
começo. Como quer que seja, essa passagem consagra o princípio da preexistência
da alma e, por conseguinte, o da pluralidade das existências.
10. Ora, desde o tempo de João Batista até o presente, o reino dos céus é tomado pela violência e são os
violentos que o arrebatam; – pois que assim o profetizaram todos os profetas até João, e também a lei. – Se quiserdes compreender o que vos
digo, ele mesmo é o Elias que há de vir. – Ouça-o aquele que tiver ouvidos de ouvir. (S. MATEUS,
11:12 a 15.)
11. Se o princípio da reencarnação, conforme se acha
expresso em S. João, podia, a rigor, ser interpretado em sentido puramente
místico, o mesmo já não acontece com esta passagem de S. Mateus, que não permite equívoco: ELE MESMO é o Elias que há de vir. Não há aí figura, nem
alegoria: é uma afirmação positiva. – “Desde o tempo de João Batista até o presente o reino dos céus é tomado pela
violência.” Que significam essas palavras, uma vez que João Batista ainda vivia naquele momento? Jesus as explica, dizendo: “Se quiserdes compreender o que digo, ele mesmo
é o Elias que há de vir.” Ora, sendo João o próprio Elias, Jesus alude à época em que João vivia com o nome de Elias. “Até ao presente o reino dos céus é tomado pela violência”: outra alusão à violência da lei moisaica, que ordenava o extermínio dos infiéis, para que os demais ganhassem a Terra
Prometida, Paraíso dos hebreus, ao passo que, segundo a nova lei, o céu se ganha pela caridade e pela
brandura.
E acrescentou: Ouça aquele que tiver ouvidos de ouvir. Essas palavras, que Jesus tanto repetiu, claramente dizem que nem todos estavam em condições de compreender
certas verdades.
12. Aqueles do vosso povo a quem a morte foi dada viverão de novo; aqueles que estavam mortos em meio a
mim ressuscitarão. Despertai do vosso sono e entoai
louvores a Deus, vós que habitais no pó; porque o orvalho que cai sobre vós é um orvalho de luz e porque arruinareis a Terra e o reino dos gigantes. (ISAÍAS, 26:19.)
13. É também muito explícita esta passagem de Isaías: “Aqueles do vosso povo a quem a morte foi dada viverão de novo.” Se o profeta houvera querido falar da vida
espiritual, se houvera pretendido dizer que aqueles que tinham sido executados não estavam mortos em Espírito, teria dito: ainda vivem, e não: viverão de novo. No sentido espiritual, essas palavras seriam um contra-senso, pois que implicariam uma interrupção na vida da alma. No sentido de regeneração moral, seriam a negação das penas eternas, pois que
estabelecem, em princípio, que todos os
que estão mortos reviverão.
14. Mas, quando o homem há morrido uma vez, quando seu corpo, separado de seu espírito, foi consumido,
que é feito dele? – Tendo morrido uma vez, poderia o homem
reviver de novo? Nesta
guerra em que me acho todos os dias da minha vida, espero que chegue a minha mutação.
(JOB,14:10,14. Tradução de Le Maistre de Sacy.)
Quando o homem morre, perde toda a sua força, expira. Depois, onde está ele? – Se o homem morre, viverá de novo? Esperarei todos os dias de meu combate, até que venha alguma mutação? (ID. Tradução protestante de Osterwald.)
Quando o homem está morto, vive sempre; acabando os dias da minha existência terrestre, esperarei, porquanto a ela voltarei de novo. (ID. Versão da Igreja grega.)
15. Nessas três versões, o princípio da pluralidade das
existências se acha claramente expresso. Ninguém poderá supor que Job haja
querido falar da regeneração pela água do batismo, que ele decerto não conhecia. “Tendo o homem morrido uma vez, poderia reviver de novo?” A idéia de morrer
uma vez, e de reviver implica a de morrer e reviver muitas vezes. A versão da
Igreja grega ainda é mais explícita, se é que isso é possível: “Acabando os dias da minha existência
terrena, esperarei, porquanto a ela voltarei”, ou, voltarei à existência terrestre. Isso é tão claro, como se alguém
dissesse: “Saio de minha casa, mas a ela tornarei.”
“Nesta guerra em que me encontro todos os dias de minha vida, espero que se dê a minha mutação.” Job,
evidentemente, pretendeu referir-se à luta que sustentava contra as misérias da
vida. Espera a sua mutação, isto é, resigna-se. Na versão grega, esperarei
parece aplicar-se, preferentemente, a uma nova existência: “Quando a minha
existência estiver acabada, esperarei, porquanto a ela voltarei.” Job como que se coloca, após a morte, no intervalo que separa uma existência de outra e diz que lá aguardará o momento de voltar.
16. Não há, pois, duvidar de que, sob o nome de ressurreição, o princípio da reencarnação era ponto de uma das crenças fundamentais dos judeus, ponto que Jesus e os profetas
confirmaram de modo formal; donde se segue que negar a reencarnação é negar as palavras do Cristo. Um dia, porém,
suas palavras, quando forem meditadas sem idéias preconcebidas, reconhecer-se-ão autorizadas quanto a esse ponto, bem como em relação a muitos outros.
17. A essa autoridade, do ponto de vista religioso, se
adita, do ponto de vista filosófico, a das provas que resultam da observação dos fatos. Quando se trata de remontar dos
efeitos às causas, a reencarnação surge como de necessidade absoluta, como condição inerente à Humanidade; numa
palavra: como lei da Natureza. Pelos seus resultados, ela se evidencia, de modo, por assim dizer, material, da mesma forma que o motor oculto se revela pelo movimento. Só ela pode dizer ao homem donde ele vem, para onde vai, por que está na Terra, e justificar todas as anomalias e todas as
aparentes injustiças que a vida apresenta.¹
Sem o princípio da preexistência da alma e da pluralidade
das existências, são ininteligíveis, em sua maioria, as máximas do Evangelho, razão por que hão dado lugar a tão contraditórias interpretações. Está nesse princípio a chave que lhes restituirá o sentido verdadeiro.
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Veja-se, para os desenvolvimentos do dogma da reencarnação, O Livro dos Espíritos, caps. IV e V; O que é o Espiritismo,
cap. II, por Allan Kardec; Pluralidade das Existências, por Pezzani.