terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
Mensagem - Entrevista com Judas Iscariotes por Humberto de Campos
JUDAS ISCARIOTES
(Comunicação mediúnica, recebida em Pedro Leopoldo, no dia 19 de Abril de 1935)
Silêncio augusto cai sobre a Cidade Santa. A antiga capital da Judéia parece dormir o seu sono de muitos séculos. Além, descansa Getsêmani onde o Divino Mestre chorou numa longa noite de agonia, acolá, está o Gólgota sagrado e em cada coisa silenciosa há um traço da Paixão que as épocas guardarão para sempre. E em meio de todo o cenário, como um veio cristalino de lágrimas, passa o Jordão silencioso, como se as suas águas mudas, buscando o Mar Morto, quisessem esconder das coisas tumultuosas dos homens os segredos insondáveis do Nazareno.
Foi assim, numa dessas noites que vi Jerusalém, vivendo a sua eternidade de maldições.
Os espíritos podem vibrar em contato direto com a história e buscando uma relação íntima com a cidade dos profetas, procurava observar o passado vivo dos Lugares Santos. Parece que as mãos iconoclastas de Tito por ali passaram como executoras de um decreto irrevogável e por toda a parte ainda persiste um sopro de destruição e desgraça. Legiões de duendes, embuçados nas suas vestimentas antigas, percorrem as ruínas sagradas e no meio das fatalidades que pesam sobre empório morto dos judeus, não ouvem os homens os gemidos da humanidade invisível.
Nas margens caladas do Jordão, não longe talvez do lugar sagrado, onde o Precursor batizou Jesus Cristo, divisei um homem sentado sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica irradiava-se uma simpatia cativante.
Sabe quem é este? — murmurou alguém aos meus ouvidos — Este é Judas.
— Judas?!
— Sim. Os espíritos apreciam, às vezes, não obstante o progresso que já alcançaram, volver atrás, visitando os sítios onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-se momentaneamente transportados aos tempos idos. Então mergulham o pensamento no passado, regressando ao presente, disposto ao heroísmo necessário do futuro. Judas costuma vir à Terra nos dias em que se comemora a Paixão de Nosso Senhor, meditando nos seus atos de antanho...
Aquela figura de homem magnetizava-me. Eu não estou ainda livre da curiosidade do repórter, mas entre as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um abismo. O meu atrevimento, porém, e a santa humildade do seu coração ligaram-se para que eu o atravessasse, procurando ouvi-lo:
— O senhor é, de fato, o ex-filho de Iscariotes? — perguntei.
— Sim, sou Judas, respondeu aquele homem triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longa túnica.
Como o Jeremias, das Lamentações, contemplo, às vezes, esta Jerusalém arruinada, meditando nos juízos dos homens transitórios...
— É uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento com respeito à sua personalidade na tragédia da condenação de Jesus?
— Em parte... Os escribas que redigiram os evangelhos não atenderam às circunstâncias e às tricas políticas que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificação. Pôncio Pilatos e o tetrarca da Galiléa, além dos seus interesses individuais na questão, tinham ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em satisfazer as aspirações religiosas dos anciãos judeus. Sempre a mesma história. O Sinednm desejava o reino do céu pelejando por Jeovah, a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra. Jesus estava entre essas forças antagonistas, com a sua pureza imaculada. Ora, eu era um dos apaixonados pelas idéias socialistas do Mestre, porém o meu excessivo zelo pela doutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via a
política, única arma com a qual poderia triunfar e Jesus não obteria nenhuma vitória com o Seu desprendimento das riquezas. Com as Suas teorias nunca poderia conquistar as rédeas do poder já que, no Seu manto de pobre, se sentia possuído de um santo horror à propriedade. Planejei então uma revolta surda como se projeta hoje em dia na Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria a um plano secundário e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica como a que fez mais tarde Constantino Primeiro, o Grande, depois de vencer Maxêncio às portas de Roma, o que aliás apenas serviu para desvirtuar o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre a Caifás, não julguei que as coisas atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio era a única maneira de me redimir aos seus olhos.
— E chegou a salvar-se pelo arrependimento?
— Não. Não consegui. O remorso é uma força preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica, submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta. Sofri horrores nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus e as minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde, imitando o Mestre, fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição, deixei na Terra os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV.
Desde esse dia, em que me entreguei por amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me aviltavam, fechei o ciclo das minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentindo na fronte o ósculo de perdão da minha própria consciência...
— E está hoje meditando nos dias que se foram... — pensei com tristeza.
Sim... estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele que se acha no Seu Luminoso Reino das Alturas que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de Seus divinos passos. Vejo-O ainda na cruz, entregando a Deus o Seu destino... Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que O abandonaram inteiramente e me vem uma recordação carinhosa das
poucas mulheres que O ampararam no doloroso transe... Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor... olho complacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra...
Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios cheios de miséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém, estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência, no tribunal dos suplícios redentores.
Quanto ao Divino Mestre, continuou Judas com os seus prantos, infinita é a Sua misericórdia e não só para comigo porque se recebi trinta moedas, vendendo-O aos seus algozes há muitos séculos, Ele está sendo, criminosamente, vendido no mundo a grosso e a retalho por todos os preços, em todos os padrões do ouro amoedado...
— E verdade — concluí — e os novos negociantes do Cristo não se enforcam depois de vendê-Lo.
Judas afastou-se, tomando a direção do Santo Sepulcro e eu, confundido nas sombras invisíveis para o mundo, vi que no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes, enquanto o Jordão rolava na sua quietude com um lençol de águas mortas, procurando um mar morto.
HUMBERTO DE CAMPOS
Comunicação mediúnica, recebida em Pedro Leopoldo, no dia 19 de Abril de 1935, está no livro "Mensagens de Além-Túmulo" - Psicografia de Francisco Cândido Xavier